quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Figura nº2: Gari "underground"















Há 50 anos, um piercing no rosto era certamente uma novidade. Quase um pecado. Hoje, assim como tatuagem, ter um brinco perfurado na língua, na sobrancelha, no nariz ou na orelha é mais que normal. Mas o que dizer de 93 piercings espalhados (ou seria aglutinados?) em todo o rosto e nas orelhas, 15 tatuagens, unhas e cabelos coloridos e um uniforme ‘laranja cheguei’?

É inevitável não olhar para ela. Margarete Maria da Silva, de 52 anos, chama a atenção por onde passa e varre. “As pessoas mexem comigo, me parabenizam e dizem que sou corajosa”. Há 23 anos limpando as ruas de Belo Horizonte, essa gari underground coleciona furos que guardam uma curiosa história de herança indígena.

Tudo começou no aniversário de oito anos, em 1965:

- Filha, infelizmente não tenho dinheiro para comprar um presente, mas posso levar você até a pracinha para assistir a um filme. Quer?
- Quero, mãe.

Aí nasceu a inspiração de Margarete. Na tela, a cena de uma índia que perfura o nariz com pedaços de bambu. No banco da praça -- a principal da cidade de Serro, em Minas Gerais -- os olhos encantados de uma criança. “Não me lembro do nome do filme, mas me lembro direitinho da índia se ‘estrepando’ toda. Ela mesma enfiava o bambu no nariz”, recorda.


Aquilo não saiu da cabeça da menina. Ao chegar à casa, os pés de ora-pro-nobis, laranjeira e coqueiro deram ainda mais asas à sua imaginação. Ela retirou vários espinhos e esperou o dia seguinte para, digamos, se enfeitar. Depois que a mãe saiu para o trabalho, pela manhã, ela se trancou no quarto e deu início a operação-espinho.

“O primeiro eu ‘estrepei’ no nariz. Não senti dor nenhuma. Aí fui colocando os outros que peguei na pornobe (sic). Pus na testa, na bochecha, perto do olho... Tudo de uma vez só”.

Quando a mãe chegou do trabalho com a ‘mutuca’ (cesta com alimentos) na mão, Margarete se escondeu -- um comportamento incomum diante da chegada da comida. Ela esperou o medo passar um pouco e apareceu: “Olha, mãe. Olha! Eu também sou índia!”

“Foi aí que ela me cortou na precata roda e na vara de marmelo, para depois me levar ao médico”. Chocado, ele retirou todos os espinhos e alertou: “vigie a sua filha para que ela não repita isso”.

- Não adianta, mãe. Eu vou pôr tudo de novo.
- Se você fizer isso, te arrebento no couro.

Para fugir do possível castigo e não deixar que um de seus nove irmãos desconfiasse, Margarete voltou a colocar os espinhos e fugiu para a casa da madrinha. Mas sua desobediência não foi aprovada e a mandaram de volta para casa.

A mãe entrou em pânico. E a filha também: “se não me deixar ficar com eles, eu vou fincar todos no meu coração.” E agora? Levá-la para o médico e depois ter que voltar para o mesmo procedimento não iria funcionar. Como dizia a mãe, “médico tem coisa mais importante para fazer do que tratar de malcriação de criança”.

- Você não está sentindo dor, filha?
- Não!

Então, “seja o que Deus quiser”. E assim foi. Durante trinta anos ela manteve partes de sua laranjeira, coqueiro e ora-pro-nobis no rosto. Ela se acostumou e a família também -- principalmente seus sete filhos, que cresceram vendo uma mãe diferente das outras.

A troca
A decisão de trocar os espinhos por piercings surgiu depois que ela começou a trabalhar na empresa responsável pela limpeza urbana de Belo Horizonte, que a aceitou com os enfeites na cara desde que estivesse segura de que isso não lhe atrapalharia a enxergar. No exame admissional, Margarete provou que a visão estava boa, assim como a saúde.

Aos poucos, a gari foi comprando piercings que via em lojas do centro da cidade -- que iam de R$ 1 a R$ 10 -- e, após juntar vários, trocou tudo de uma só vez. “Eu vi que eles estavam fabricando coisa melhor que espinho”.

- Margarete, mas não é possível que não dói!
- Iiiiih, minha filha... Nunca tive problema de inflamação. Cicatriza tudo rapidinho. Eu posso cair no chão e me esfolar todinha que saro rápido. Eu mesma coloco todos os piercings. Aprendi com os espinhos, né?

Dos setes filhos, apenas o mais novo, de 19 anos, tem um piercing na boca. Já a namorada do garoto, que possui um no nariz, se inspirou na sogra e colocou mais um na orelha.

O que as pessoas falam
Segundo Margarete, apesar de o preconceito de hoje ser muito menor do que há quarenta anos, ela nunca se sentiu incomodada. Os irmãos costumavam dizer que ela era de outra raça e mundo; outros a chamavam de “louca varrida” e “indígena”; e alguns a apelidaram de “louro”, “papagaio” e “periquito” por causa do cabelo vermelho. “O pessoal falava que eu tinha pacto com o demônio”, conta.

Mas isso não a afetava. Principalmente quando, antes de ser gari, ela vendia bijuterias nas ruas da cidade. “Meus espinhos atraíam as pessoas. Elas gostavam do meu tipo. Eu vendia muito e até sobrava dinheiro”. Os acessórios eram do estilo hippie, feitos com cordas, clipes, miçangas e anéis de lata.

As tatuagens, muitos pensam ser adesivos colados. Seu colega de rua as fez há mais de 20 anos, quando passou um dia inteiro com a agulha e tinta sobre o corpo de Margarete. A que faz mais sucesso até hoje é a de um casal de leões fazendo amor nas suas costas. “É a que eu mais gosto, né? É o meu signo”.

No trabalho, ninguém parece se assustar com o visual da gari. “Eu não tenho nada contra. Acho até legal. Todo mundo já está acostumado com ela assim”, afirma Teresa Azevedo, colega de Margarete e também gari.

Na escola (agora ela está aprendendo a ler e a escrever), o único comentário foi o do professor, que pediu a ela para cortar um pouco as unhas, senão não seria possível usar o computador. “Quando tentei digitar alguma coisa no teclado, o “r” saiu seis vezes na tela do computador (Rrrrrr).” Depois do pedido, Margarete cortou as de alguns dedos.

“Eu gosto de ser assim. É uma loucura mesmo... Um espírito meio aventureiro. Sabe como é, né? Quanto mais faz, mais quer. Eu pretendo colocar mais piercing sim”, diz.

O estilo, digamos radical, se pode notar também no seu dia-a-dia. Margareth gosta de andar com pulseiras no pé e calça rasgada. Do que ela não abre mão de maneira alguma é dos brincos no rosto. Se um dia tivesse que tirá-los, provavelmente perderia sua identidade. Mas nunca a lembrança do filme. “O piercing de que mais gosto é este aqui da orelha, que tem formato de espinho”.

5 comentários:

  1. Nayyy, adorei! O texto ficou muito bom...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Uau!! Depois do texto comecei ate a pensar q e normal!

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  4. Animou de colocar alguns no rosto também? rs!

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  5. É isso ai Margarete . Faça o que tem vontade e do que voce gosta . Tbm tenho piercings no rosto . 9 e um microdermal .

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